Culpa

Ariel Milton, Psicólogo

Porque sentimos culpa?

Uma razão é que a culpa pode ser ADAPTATIVA, pois pode-nos ajudar a aprender com as nossas experiências e descobrir se há algo que podemos fazer diferente na próxima vez que estivermos numa situação semelhante. Quando algo mau acontece, é natural sentirmo-nos culpados momentaneamente, porque isso obriga-nos a avaliar a situação para ver se há algo que fizemos que causou o evento. E se assim for, aprendemos a não fazê-lo novamente e tomamos as medidas para reparar ou fazer as pazes, se pudermos e se for apropriado.


Aqui está um exemplo: imagine que está realmente apressado de manhã e acaba por gritar com o seu ente querido (filho, cônjuge, etc.) para se apressar e sair do banho. Pode sentir-se culpado mais tarde. Se dedicar um tempo para analisar por que se sente assim, pode decidir “Esse não é o tipo de pessoa que eu quero ser. O que posso fazer diferente da próxima vez?” Pode decidir pedir desculpa ao seu ente querido e acordar um pouco mais cedo ou preparar algumas coisas na noite anterior a partir de agora.

 

Se um pai perde o jogo de futebol do seu filho porque foi retido ou se esqueceu, também pode sentir-se culpado. A culpa pode obrigá-lo a sair mais cedo da próxima vez ou criar um lembrete no seu calendário.

 

Assim, a culpa pode ser adaptativa porque impele-nos a avaliar a situação e aprender com ela para aumentar as nossas hipóteses de um resultado melhor na próxima vez que algo semelhante acontecer.

Outra forma pela qual a culpa pode ser adaptativa é servir como um FAROL, iluminando o que é importante para nós, quais são os nossos valores e o que podemos decidir fazer para viver de acordo com os nossos valores num determinado momento, independentemente de termos ou não seguido estes valores nos últimos 5, 10 ou 20 anos.

 

Vamos usar o exemplo acima do pai que perdeu o jogo de futebol do seu filho. Analisar por que se sente culpado pode permitir que o pai identifique quais os valores que sente que violou (como estar presente para o seu filho - valores da família) e levá-lo a comprometer-se a fazer as coisas de forma diferente no futuro. Por exemplo: “Sinto-me culpado porque não fui ao jogo do meu filho. Vou ajustar a minha agenda para que possa ver os jogos mais importantes dele no futuro.”

 

Da mesma forma, a culpa pode impedir-nos de agir de uma forma que viole os nossos valores pessoais e/ou sociais (por exemplo, causar dano a outra pessoa, trair um amigo). É uma sensação desagradável, para dizer no mínimo, então queremos evitar senti-la.

A CULPA pode ser um problema, sobretudo, quando não temos a oportunidade de avaliar realisticamente e aprender com o que aconteceu ou adotar medidas para reparar as coisas.

O que muitas vezes acontece é que aderimos facilmente à culpa (por exemplo, “Sinto-me culpado, portanto, devo ter feito algo terrivelmente errado”).

Quando adotamos esta via, perdemos a oportunidade de descobrir se realmente poderíamos ter feito algo diferente. E com isto, em vez da culpa nos ajudar a orientar o nosso comportamento de uma forma orientada por valores; a culpa começa a interferir na forma como vivemos a vida (em sofrimento psicológico).

Quando algo tão terrível quanto um EVENTO TRAUMÁTICO acontece, é muito difícil compreender por que ocorreu. É muito comum as pessoas culparem-se e dizerem a si mesmas que, se tivesse feito uma escolha melhor, teria conseguido evitar o que aconteceu. O que dizemos a nós mesmos (nossos pensamentos e crenças) pode ser um fator que contribui para a culpa, causando muita dor e problemas nas nossas vidas.

Culpa em contexto clínico

No último Manual Diagnóstico e Estatístico (DSM-5), CULPA e VERGONHA foram incluídos nos critérios diagnósticos para PTSD pela primeira vez e, em reconhecimento das muitas formas de apresentar a PTSD, o diagnóstico não é mais considerado uma Perturbação de Ansiedade. Estas alterações facilitam a avaliação de diferentes fenótipos da PTSD, como por exemplo caracterizado por culpa e vergonha, e levantam a possibilidade de que diferentes fenótipos possam responder melhor a tratamentos específicos.

A culpa relacionada ao trauma é um dos sintomas com maior probabilidade de persistir após o tratamento bem-sucedido da PTSD, sugerindo que intervenções psicoterapêuticas estruturadas como Prolonged Exposure Therapy - PE, Cognitive Processing Therapy - CPT, ou Trauma Informed Guilt Reduction Therapy - TrIGR (ver tratamentos no fim da página) visando a culpa pós-traumática sejam fortemente recomendadas pelos guidelines mais recentes.

Às vezes alguns pacientes culpabilizam-se por EVENTOS TRAUMÁTICOS ocorridos. Seja por aquilo que acreditam que deviam ter feito, ou tinham que ter feito! Ou, talvez alguém lhes disse que tudo o que se passou foi culpa sua

Por vezes os pacientes sentem-se culpados por um determinado evento porque estavam a fazer algo impróprio no momento como por exemplo beber álcool e, em seguida, conduzir e ter um acidente em que um passageiro morre; ou, sentir-se culpado por ter sido o único sobrevivente; ou, sentir-se culpada por ter convidado para sair um agressor sexual; ou, sentir-se culpada pelas discussões e divórcio dos pais; ou, por não cumprir uma determinada tarefa (por exemplo acreditar que devia ter atacado o inimigo e que teria evitado a morte de um camarada amigo); ou, acreditarem que não cumpriram com o seu dever (por exemplo o militar acreditar que devia ter reparado na terra remexida no caminho, que continha um engenho explosivo)…

Avaliar a CULPA:

Medir a culpa representa um verdadeiro desafio. A culpa é um estado emocional interno, um sentimento muito difícil de avaliar diretamente.

Na verdade, ao contrário de outras emoções "primárias" (por exemplo, medo, nojo), a culpa não envolve uma expressão facial específica (Izard, 1977). Portanto, temos que estar atentos aos relatos verbais das pessoas e, portanto, surgem muitos problemas.

Por exemplo, muitas pessoas tendem a dizer-nos algo sobre os seus sentimentos de culpa, confundindo-os com vergonha (e alguns profissionais de saúde também encontram difícil a distinção entre vergonha e culpa!). Pode ser bom princípio ter certeza de que existe no discurso do paciente expressões como: "eu devia ter feito algo ", "tinha que ter feito diferente" ou" eu não devia ter feito algo“.


Como clínicos, quando estamos a intervir numa pessoa, é sempre bom medir se a mudança realmente está a acontecer, e se se deve ao efeito do tratamento.

 

O Inventário de Culpa Relacionada ao Trauma (TRGI) (Edward Kubany et al., 1996), é um instrumento psicométrico de autopreenchimento (5´) com 32 items e usa uma escala de lickert de 5 pontos (0=nada verdadeiro; 5=Extremamente verdadeiro) para medir a culpa relacionada ao trauma. A escala esta muito bem desenvolvida e psicométricamente sólida. Tem três escalas que medem a culpa geral (4 itens), o distress (sofrimento relacionado à culpa, 6 itens) e três (subescalas) percepções erradas comuns à culpa (22 itens):

Conheça o TRGI aqui.

Culpa traumática - workshop 

Formador: Ariel Milton, Psicólogo

Este Workshop destina-se a estudantes e profissionais da área da Psicologia, bem como seminaristas e finalistas de Doutoramento, de Mestrado, de Licenciatura, de Pós-Graduação, de Especialização ou MBA.

Duração: 3h

Objetivos Gerais

Investimento: 50€ (profissionais) 20€ (estudantes). Certificado de participação incluído.

"Um dos maiores inimigos da pessoa na recuperação Pós-trauma é a CULPA." (Ariel Milton)

As pessoas que experimentam um EVENTO TRAUMÁTICO, para além das emoções vividas no momento (emoções primárias e naturais como medo, surpresa), podem vir a sentir, após o evento, fortes emoções de vergonha, culpa e tristeza (emoções secundárias, ou sentimentos construídos). Portanto, experimentam emoções que surgem diretamente da experiência do trauma, mas também da interpretação que fazem do acontecimento traumático, e do seu papel.

Quanto às emoções primárias (naturais), estas dissipam-se rapidamente, a menos que haja algo a alimentá-las. É importante a pessoa sentir estas emoções sobre o evento, que na altura poderá não se ter permitido experimentá-las ou deixá-las correr o seu curso natural. O segundo tipo de emoções secundárias (sentimentos construídos) não resultam como resposta ao evento traumático, mas tem por base a forma como a pessoa interpreta o evento posteriormente.

O “caos” cognitivo pós-traumático é em si uma tentativa, mais ou menos adaptativa, de reorganização da estrutura cognitiva que ficou despedaçada no trauma. As crenças anteriores (ideias de mim, outros e mundo) ficam abaladas e desorganizam a pessoa, deixando-a por vezes num estado “procurar sofregamente algo…”, algo que existia e agora não. Se a pessoa tem pensamentos tais como “eu deveria ter salvo o outro” ou “devo ser um falhado pois não consigo superar isto”, então vai sentir “raiva” de si mesmo ou vergonha. Estas emoções e sentimentos não são baseados sobre os factos do evento, mas nas suas interpretações. Quanto mais pensar sobre o evento nestes termos, quanto mais destes sentimentos construídos vai ter.

A vantagem do facto da pessoa saber que está a produzir estes sentimentos é que se mudar os seus pensamentos e interpretações, vai conseguir mudar os seus sentimentos e reações. Uma breve analogia: pense nas suas emoções como um incêndio numa lareira. O fogo tem energia e calor para isso, assim como as suas emoções. No entanto, o fogo vai apagar-se se não é alimentado continuamente. Autoculpa ou pensamentos culpabilizadores podem continuar a alimentar o fogo emocional indefinidamente. Se tirar o combustível dos seus pensamentos, o fogo queima-se rapidamente.

"O sentimento de culpa torna-se um ponto de bloqueio na recuperação da pessoa. "

Os psicólogos podem usar o diálogo socrático para ajudar os pacientes com estas crenças. Em alguns casos, ajudando os pacientes a compreender a probabilidade de resultados, independentemente do seu comportamento, pode ajudá-los com estes pontos de bloqueio. Em muitos casos, as ações dos pacientes tinham pouco ou nenhum impacto sobre os resultados. Os pacientes podem ser ajudados quando têm crenças irrealistas sobre as capacidades humanas. Por exemplo, em contexto militar, se a maioria das pessoas conseguem ver pequenas mudanças de cor numa estrada de terra quando se deslocam num veículo semi-fechado a 45 kms/h, e ainda tem de observar todo o ambiente em redor para detetar todos os tipos de ameaças? A aceitação das decisões tomadas no momento deve ser promovida. Os pacientes podem ser ajudados a fazer perguntas como: “Será que as pessoas boas tomam sempre decisões más?”; “Todas as más decisões resultam em maus resultados?”; e “Tomar boas decisões, por vezes, pode resultar em maus resultados?” O objetivo é ajudar os pacientes a aceitarem que tomaram decisões e fizeram escolhas no momento em que, com o benefício da retrospetiva, parecem pouco apoiadas.

Mas eles não tinham como intenção aquele resultado (intencionalidade). E que essa escolha não os torna uma má pessoa. Uma meta importante no tratamento é ajudar os pacientes a aceitar plenamente as suas experiências daquele período/tempo e entender que essas experiências não têm que governar a sua vida.

Por vezes, o discurso em relação ao passado acarreta consigo terminologia que não ajuda a pessoa a recuperar a uma determinada normalidade desejada. É frequente ouvirmos no discurso dos pacientes palavras como “devia” ter feito isto ou aquilo, “devia” ter sido assim ou assado, ou “tinha” que ter percebido isto ou aquilo, ou “tinha” que ter feito doutro modo. São palavras (verbos transitivos) que obrigam a uma determinada ação. O não cumprimento do “dever” implica uma determinada “consequência”, "punição". Dever e ter são palavras determinantes do comportamento e a pessoa que acredita que não “fez aquilo que tinha que fazer” incorreu numa infração/erro, sentindo-se culpada pelo facto.

“A culpa é uma resposta apropriada após a pessoa cometer uma atrocidade ou crime.”

Nota: Um paciente pode precisar de aceitar o que fez, estar arrependido e procurar o perdão de si mesmo ou, se for religioso, o perdão dentro da igreja ou outro local de adoração. A maioria das igrejas ou outros lugares de culto não conferem perdão ao impenitente. Se o autor não pediu perdão, não há necessidade de o paciente perdoar. Mesmo se o autor do evento traumático pediu perdão, o paciente não é obrigado a dá-lo! Entender por que alguém fez algo não é o mesmo que desculpá-lo. O paciente poderia encaminhar o autor para a igreja, ou outros locais de culto, para pedir perdão de Deus. O propósito do paciente que concede o perdão não deve ser para alguém fingir que tudo está bem, mas apenas para dar ao paciente alguma paz de espírito. Se o perdão for forçado por outros, isso só trará frustração e culpa.

Ora, como acima referido, a culpa pressupõe “dolo”, agir com intencionalidade. Na maioria dos nossos casos clínicos, os pacientes sentem-se culpabilizados (por eles ou sociedade) e usam de um discurso de culpabilização, confundindo a culpa com responsabilidade. A manutenção deste discurso faz com que a pessoa se mantenha agarrada ao passado, arrastando as emoções do evento indefinidamente. Assumir a responsabilidade dos seus atos, implica o reconhecimento da sua ação, não intencional, com consequências desagradáveis, que em grande parte dos casos são imprevisíveis e incontroláveis!..

Após um trabalho cognitivo estruturado, o paciente é convidado a reexperiênciar o passado e dirigir-se a este num discurso mais atualizado e mais construtivo, substituindo os verbos transitivos por condicionais “gostaria que tivesse sido diferente”, “gostaria de ter sido mais hábil na escolha que fiz”, “naquele momento decidi em condições difíceis e não poderia saber o resultado”.

Tratamentos

A Terapia de Exposição Prolongada (Prolonged Exposure Therapy - PE) é uma forma estruturada de psicoterapia desenvolvida por Edna Foa, uma professora/investigadora israelita de psicologia clínica na Universidade da Pensilvânia, usando de uma abordagem cognitivo-comportamental na compreensão e tratamento de perturbações mentais como por exemplo a Perturbação de Stress Pós-traumático (inclui sintomas como Culpa e Vergonha).  

A Terapia de Processamento Cognitivo (Cognitive processing therapy - CPT) é uma forma estruturada de psicoterapia que visa confrontar memórias traumáticas distorcidas, para modificar tais crenças e dissipar as emoções inadequadas. Tem uma duração média de doze sessões de uma hora cada e tem como objetivos: a) facilitar a expressão do afeto e adaptar de forma apropriada o acontecimento traumático aos “esquemas” sobre si mesmo e o mundo; b) reconhecer e modificar antigos pensamentos e sentimentos que não são úteis; c) aceitar a realidade do evento traumático; d) flexibilizar as crenças o suficientes para aceitar o evento traumático; e) sentir, genuinamente, emoções acerca do evento traumático. São usados vários materiais de apoio e o paciente tem um papel preponderante e ativo na sua recuperação.

A Terapia de Redução da Culpa Informada do Trauma (Trauma Informed Guilt Reduction Therapy - TrIGR) é uma psicoterapia transdiagnóstica estruturada para abordar a culpa, a vergonha e lesão moral decorrentes de eventos traumáticos. Os principais objetivos da TrIGR são ajudar os pacientes a identificar e avaliar com precisão o seu trauma e a se reencontrar com seus valores para se recuperar do sofrimento pós-traumático. Tem uma duração média de quatro a sete sessões de uma hora cada.

Ariel Milton, Psicólogo, PTSD Center www.ptsd-center.com