Luto e Crescimento Pós-traumático

Ariel Milton, Psicólogo

Percursos clínicos pós-trauma

A duração de uma reação de luto parece depender da forma, mais ou menos bem-sucedida, como a pessoa trabalha o luto. Nomeadamente, emancipando-se do laço afetivo à pessoa perdida, reajustando-se novamente ao mesmo ambiente que antes partilhavam, e através do estabelecimento de novas relações interpessoais afetivas. Um dos grandes obstáculos a este trabalho individual parece ser o facto de muitas pessoas enlutadas tentarem evitar a necessária expressão das suas emoções e sentimentos. Um tema central dos desafios de vida, incluindo o luto, é sua natureza sísmica (Tedeschi, 2011). Assim como as catástrofes naturais podem afetar o ambiente físico, os eventos que representam grandes crises de vida são aqueles que abalam, desafiam ou às vezes destroem a forma como a pessoa compreende o seu lugar no mundo. Quando este abalo dos fundamentos dos pressupostos individuais de mundo atingem um limiar suficientemente catastrófico, pode considerar-se que o indivíduo experimenta um evento traumático. Cada indivíduo reage de forma diferente a eventos stressantes, com base nas suas características biológicas e psicológicas, na história social e sistemas de apoio, bem como na sua, uma combinação exata entre momento e circunstâncias contextuais dos eventos (Bowman, 1997; Julian et al., 2009).

Milton, A. (2021). Luto e Crescimento Pós-Traumático. In S. Gabriel, M. Paulino & T. Baptista (Eds.), Manual de Intervenção Psicológica no Luto (pp.305-328). Lisboa: Pactor

Figura 1 – curva de ajustamento a eventos traumáticos.

Portanto, eventos ou experiências traumáticas para uma pessoa podem não ser traumáticas para outra pessoa, ou podem não ser traumáticos para a mesma pessoa se o evento ou a experiência ocorrer numa forma, momento ou contexto diferente, anterior ou subsequentemente. Na consideração do percurso clínico pós-traumático não se pode esquecer a natural atenuação das alterações com o aumento da distância temporal ao evento traumático. Existe uma curva de ajustamento aos eventos traumáticos em função do tempo decorrido desde o evento que aponta para uma normalização a médio/longo prazo (Fig.1). Contudo, é possível que ocorram flutuações neste processo de recuperação, nomeadamente, nas fases de lua-de-mel quando a vítima/enlutado recebe todo o amparo e apoio, e nas fases de desencanto e desamparo quando se avança para a sua autonomização.

O impacto dos stressores traumáticos incluem uma variedade de mudanças que ocorrem no trajeto de vida de uma pessoa com o passar do tempo (Fig. 2), incluindo também trajetórias positivas que foram descritas como “resistência” “resiliência”, “recuperação” e “crescimento pós-traumático” (Julian et al., 2009). Podemos distinguir os “resistentes” como aqueles que têm as reações menos debilitantes porque se alteram menos perante o evento traumático, sendo capazes de manter a integridade da sua vida mental após uma agressão psicológica. Podemos ainda distinguir os “resilientes” como aqueles que têm maior capacidade de adaptação e recuperação, isto é, a capacidade de restabelecer o seu equilíbrio após este ter sido rompido. Mas tanto uns como outros estão condicionados por fatores de risco ou fatores protetores. Portanto, nem sempre um trauma psicológico causa doença, e nem todas as vítimas de trauma necessitam de intervenção.

Figura 2 – Trajetórias de adaptação após eventos stressantes ou traumáticos da vida.

Trauma como elemento regenerador

A experiência traumática pode tornar-se num ponto de partida para uma reorganização de vida com reorientação de valores, opções e objetivos no sentido do crescimento e do amadurecimento pessoal. Existem duas noções aparentemente opostas sobre as ramificações do trauma. A primeira, amplamente adotada, postula que o trauma tem um efeito patogénico. Os eventos traumáticos comprometem o equilíbrio físico e psicológico, dando origem a uma ampla gama de complicações de saúde física e mental. Um conjunto considerável de estudos empíricos dá suporte a esta visão, documentando o aumento das taxas de PSPT, depressão, ansiedade, somatização e alcoolismo (Kessler, Sonnega, Bromet, Hughes, & Nelson, 1995). Uma perspetiva alternativa propõe que o trauma tenha um efeito edificante. As pessoas podem desenvolver uma perspetiva positiva e experimentar mudanças psicológicas positivas na sequência de eventos traumáticos (Tedeschi & Calhoun, 2004).

Muitos sobreviventes de traumas descrevem a sensação de um crescimento psicológico, emocional ou espiritual como resultado de adversidades superadas como a guerra, violência familiar, abuso infantil e acidentes com risco de vida, desastres ou doenças. Os sobreviventes de trauma descreveram os seus sentimentos como se tivessem uma segunda oportunidade de vida e, como resultado, passaram a apreciar mais as oportunidades que têm nas suas vidas e relacionamentos. Experiências que antes pareciam banais, ou passavam despercebidas na pressa de cumprir prazos e seguir rotinas habituais, parecem ter um novo significado. O sobrevivente pode sentir-se capaz, ou até ser internamente compelido a “parar e cheirar as rosas” – isto é, prestar atenção e encontrar valor em todas as experiências. Alguns dizem que sentem um senso de clareza de visão e propósito, ou um novo conjunto de prioridades (Salter & Stallard, 2004). Em consonância com a psicologia positiva (Csikszentmihalyi & Seligman, 2000) os “sobreviventes” podem obter benefícios psicológicos, podendo resultar num crescimento positivo perante as dificuldades (Malhotra & Chebiyan, 2016).

O termo crescimento pós-traumático (PTG) sugerido e desenvolvido pelos autores Tedeschi e Calhoun (1995, 1996, 2004) significa que o indivíduo transformou-se em novas formas que vão para além do seu nível pré-traumático de funcionamento psicológico (Fig.3). Isto pode implicar um aumento de força pessoal, intimidade relacional, senso de espiritualidade, valorização da vida e possibilidades de vida. A conceitualização do PTG e a sua inclusão na intervenção psicológica baseiam-se em dois elementos: a crescente literatura sobre este fenómeno e as nossas experiências clínicas combinadas na prática de psicólogos clínicos (Tedeschi & Calhoun, 2013). A literatura empírica focada especificamente no PTG é bastante recente e ainda limitada em alguns aspetos. E, quando se baseia na experiência clínica, existe a possibilidade de um viés inadvertido. No entanto, como as nossas conceções de PTG têm dados para apoiá-los, este modo de pensar parece oferecer uma expansão útil da forma como as intervenções psicológicas são feitas em pessoas que lidam com o trauma e as suas consequências. Existem várias mudanças positivas que as pessoas experimentam na luta com stressores importantes refletidas no Inventário de Crescimento Pós-traumático (Tedeschi & Calhoun, 1996) como relacionamentos aprimorados, novas oportunidades de vida, uma maior apreciação pela vida, um maior senso de força pessoal, e desenvolvimento espiritual. Parece haver um paradoxo básico apreendido pelos sobreviventes de trauma que relatam estes aspetos do PTG, de que as suas perdas produziram ganhos.

Figura 3Possíveis resultados após adversidade. PTG - Post traumatic growth; PTSD - Post Traumatic Stress Disorder

Não menosprezando o impacto patogénico do trauma, recentemente um conjunto de estudos tem vindo a revelar, de forma consistente, o PTG relatado por sobreviventes após vários traumas físicos e psicológicos (Tedeschi & Calhoun, 2013). Como os resultados de trauma edificante e patogénico já foram documentados, uma questão imperativa é como eles se relacionam. Embora existam vários estudos sobre o tema, uma metanálise relatando 77 estudos (Helgeson, Reynolds, & Tomich, 2006), verificou que a relação entre PTG e distress ainda está mal definida. Um outro estudo longitudinal quis conhecer a interação entre PTG e PSPT examinando as suas direções bilaterais (Dekel, Solomon, & Ein-Dor, 2012) concluindo que o PTG é uma resposta ao distress e não o contrário, encontrando em indivíduos com PSPT níveis mais altos de PTG e mais vezes do que em indivíduos resilientes que não endossavam os sintomas de PSPT.

Milton, A. (2021). Luto e Crescimento Pós-Traumático. In S. Gabriel, M. Paulino & T. Baptista (Eds.), Manual de Intervenção Psicológica no Luto (pp.305-328). Lisboa: Pactor